Paulo Steele Helder Sousa Rodrigo Mota Gabriel Lemos Fabiano Dias

Resumo

Considere uma situação em que, num conjunto de consumidores, cada um pague um preço específico por um produto e, ao mesmo tempo, todos estejam sujeitos a um determinado benefício em termos proporcionais ao mercado total. Agora, considere uma segunda situação, em que alguns consumidores desse conjunto tenham tido elevações de preços excepcionais e, diante dessa condição, a soma dos benefícios inicialmente alocados ao conjunto seja dividida novamente entre todos, agora conforme o seu nível de preço excepcional. A redivisão foi justa? Neste artigo, demonstramos como a Medida Provisória 1.212/2024, que antecipou a quitação das contas Covid e Escassez Hídrica provoca efeito semelhante, favorecendo os consumidores das concessionárias que acessaram maiores volumes de empréstimos na criação dessas contas.

1. Introdução

Publicada em abril, a Medida Provisória n. 1.212/2024 (MP 1.212), entre outras medidas, antecipou a quitação das contas Covid e Escassez Hídrica. Para tanto, foram utilizados recursos relativos à CDE Modicidade Eletrobras1 (CDE Eletrobras), de modo que os efeitos dessa quitação serão percebidos exclusivamente pelos consumidores cativos.

Na esfera regulatória, o processo foi informado pelo Ministério de Minas e Energia (MME) à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) por meio do Ofício n. 34/2024/DPSE/SNEE-MME, de 7 de outubro de 2024. Dois dias depois, a Superintendência de Gestão Tarifária e Regulação Econômica (STR) da agência publicou o Despacho n. 3.056, interrompendo a obrigação de recolhimento pelas distribuidoras das quotas mensais de CDE Covid e CDE Escassez Hídrica a partir da competência de setembro de 2024.

Em termos práticos, a quitação antecipada das contas Covid e Escassez Hídrica já passou a ser considerada nos eventos tarifários a partir de outubro de 2024.

Ainda não foram identificados, no entanto, os reais efeitos da medida nas tarifas. Para identificá-los, não basta subtrair os valores das contas porque, se por um lado os consumidores deixam de recolher as quotas, a quitação implica também a suspensão, por três anos, dos aportes da CDE Eletrobras às tarifas. A área técnica da Aneel se comprometeu a elaborar o cálculo, a título informativo, com o impacto tarifário do processo para cada concessionária.2

Figura 1 – Projeção dos valores combinados das quotas de CDE Covid, Escassez Hídrica e Eletrobras no período de 2025 a 2027 sem a aplicação da MP 1.212

Fonte: TR Soluções, sistema SETE.

Diante dessa lacuna, este artigo visa avaliar esses impactos tarifários, de modo que os agentes possam antecipar a consideração – ainda que estimada – de seus efeitos em suas projeções relativas ao tema.

A natureza e a forma de alocação das contas Covid e Escassez Hídrica são totalmente distintas daquelas da CDE Eletrobras, assim como seus efeitos tarifários. A Figura 1 reflete essa situação: no caso das distribuidoras com valores positivos, os montantes de CDE Eletrobras são maiores do que a soma dos valores das contas agora quitadas, enquanto os valores negativos indicam exatamente o oposto.

Essas diferenças podem ser associadas às características específicas de cada item envolvido no processo de antecipação da quitação das contas, apresentadas a seguir.

2. CDE Modicidade Eletrobras

A CDE Modicidade Eletrobras se refere ao repasse, para os consumidores cativos, de uma parte dos benefícios financeiros decorrentes da desestatização da Eletrobras. Esse repasse está sendo feito desde 2022 por meio de aportes anuais, escalonados até 2047, conforme estabelecido pela Resolução n. 15/2021, do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), e ilustrado na Figura 2.

Figura 2 – Fluxo dos aportes da Eletrobras para as tarifas, bilhões de reais por ano

Fluxo dos aportes da Eletrobras para as tarifas, bilhões de reais por ano

Fonte: TR Soluções, com base na Resolução n. 15/2021, do CNPE.

Denominada CDE_ELETROBRAS, essa componente é atrelada à Tarifa de Energia (TE), para garantir que somente os consumidores cativos se beneficiem dos recursos gerados pela desestatização da Eletrobras. O valor aplicado é proporcional ao mercado cativo das distribuidoras.

A minuta do contrato de cessão e aquisição de direitos creditórios, disponibilizada no âmbito da Consulta Pública Aneel n. 020/2024, esclarece que os recursos para a quitação das contas determinada pela MP 1.212 seriam oriundos dos repasses da CDE Eletrobras para 2025 e 2026, de forma integral. Em relação a 2027, o repasse poderia ser parcial ou integral, o que dependeria da data da cessão e da taxa de juros do momento. Neste estudo inferiu-se que a totalidade dos recursos previstos para 2025, 2026 e 2027 seja utilizada na operação, totalizando R$ 6,89 bilhões.

3. Conta Covid

A Conta Covid foi criada pelo Decreto n. 10.350, de 18 de maio de 2020, como uma medida emergencial para ajudar as distribuidoras de energia elétrica a enfrentarem os desafios financeiros decorrentes da pandemia de Covid-19. Isso porque, com o aumento da inadimplência e a redução do consumo de energia decorrentes da crise sanitária, as concessionárias enfrentaram dificuldades de fluxo de caixa.

No total, a operação realizada com um conjunto de bancos somou quase R$ 15 bilhões em repasse às distribuidoras. O valor foi dividido entre as concessionárias considerando custos reconhecidos pela Aneel, de modo que cada empresa recebeu um montante específico.

O empréstimo permitiu que as distribuidoras antecipassem receitas, garantindo a continuidade do serviço e evitando aumentos tarifários imediatos para os consumidores.

A amortização do empréstimo pelos consumidores teve início nos eventos tarifários ordinários de 2021 e, sem a MP 1.212, seria concluída nos eventos tarifários de 2025. Os consumidores do Rio de Janeiro, por exemplo, deixariam de pagar a conta a partir de 15 de março de 2025.

4. Conta Escassez Hídrica

A Conta Escassez Hídrica foi estabelecida em resposta à crise de 2021, que afetou severamente os reservatórios das hidrelétricas brasileiras.

Na época, a Medida Provisória n. 1.055/2021 instituiu a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (CREG), cujas medidas foram voltadas principalmente à ampliação da geração termelétrica, com custos relativamente elevados.

Para evitar um impacto tarifário significativo e imediato dessas medidas para os consumidores, foi criado um mecanismo de empréstimo semelhante ao da Conta Covid: o montante total repassado às distribuidoras foi de cerca de R$ 5 bilhões e os custos adicionais foram diluídos ao longo do tempo – a amortização do empréstimo começou nos eventos tarifários de 2023 e, sem a MP 1.212, estava prevista para ser concluída em 2027.

5. Quem paga as contas Covid e Escassez Hídrica?

Como descrito acima, as contas Covid e Escassez Hídrica foram criadas para proteger os consumidores de aumentos tarifários abruptos e garantir estabilidade financeira para as distribuidoras naqueles momentos de crise.

O valor repassado a cada concessionária variou conforme a condição de cada empresa. Quanto à alocação dos recursos nas tarifas, as contas que estabilizaram as tarifas tanto dos consumidores livres como dos cativos foram alocadas à TUSD, enquanto aquelas que estabilizaram exclusivamente as tarifas dos cativos foram alocadas à TE. Dessa forma, os valores das contas foram incorporados às tarifas de aplicação por meio de duas componentes tarifárias específicas, a CDE_Contas_TUSD3 e a CDE_Contas_TE4 .

Além disso, para evitar que as parcelas dessas contas caracterizassem um incentivo para que consumidores cativos migrassem para o mercado livre, foram editadas medidas provisórias determinando a manutenção das cobranças destas contas de consumidores que optassem pela migração.

Com esses ajustes, até a MP 1.212, tanto consumidores livres como cativos pagavam as contas Covid e Escassez Hídrica por meio da TUSD. Já na TE, somente os consumidores cativos e os novos consumidores livres pagavam as referidas contas.

Após a quitação, na prática o que acontece é que os consumidores cativos deixam de ser onerados, tendo em vista que os recursos relativos à capitalização da Eletrobras usados nessa compensação lhes diziam respeito. Os consumidores livres e novos livres, por sua vez, continuam pagando a parcela das contas da TUSD, enquanto os novos consumidores livres continuam pagando a parcela das contas da TE como encargo de migração.

6. Potenciais impactos da quitação antecipada da CDE Contas Covid e Escassez Hídrica

O modelo tarifário provisório concebido pelo regulador para viabilizar a quitação antecipada das contas Covid e Escassez Hídrica foi estruturado de forma que, com a mudança, não haja qualquer alteração na trajetória tarifária da TUSD. Assim, mesmo após a quitação das contas, a CDE_CONTAS_TUSD permanecerá compondo a TUSD Encargos, cobrada em R$/MWh, sem distinção horária. Contudo, a componente CDE_CONTAS_TE será calculada de modo que a soma desta com a CDE_CONTAS_TUSD resulte nula para o consumidor cativo.

Isso implica que, para os eventos tarifários a partir de outubro de 2024, inclusive, a percepção dos consumidores regulados será de que as contas Covid e Escassez Hídrica deixaram de ser cobradas. Por outro lado, nada muda para os consumidores livres, inclusive aqueles que migraram após a concepção das contas.

Mas é importante reforçar que os recursos necessários para viabilizar a quitação antecipada das contas Covid e Escassez Hídrica são provenientes da antecipação de três anos dos benefícios resultantes da desestatização da Eletrobras. Ou seja, em troca da quitação das contas em 2025, até 2027 os consumidores cativos devem deixar de usufruir do alívio tarifário proporcionado pela componente CDE_ELETROBRAS da TE.

Figura 3 – Projeção dos valores combinados das quotas de CDE Covid, Escassez Hídrica e Eletrobras no período de 2025 a 2027 com a aplicação da MP 1.212

Fonte: TR Soluções, sistema SETE.

A quantificação, por distribuidora, dos valores combinados do pagamento das contas Covid e Escassez Hídrica com os aportes da CDE Eletrobras, no cenário posterior aos efeitos da MP 1.212, pode ser consultada na Figura 3.

A TR Soluções se baseou na regulação provisória já adotada nos eventos tarifários de outubro de 2024 para simular os potenciais efeitos tarifários a serem percebidos pelos consumidores cativos entre 2025 e 2027 para comparar o impacto final das mudanças nas tarifas.

Figura 4 – Impacto tarifário efetivo da MP 1.212 entre 2025 e 2027 (em R$/MWh)

Fonte: TR Soluções, sistema SETE.

Essa comparação levou em conta os dois cenários considerados neste estudo – cenário inicial, sem os efeitos da MP, em que os consumidores cativos vinham pagando os custos dos empréstimos de maneira proporcional às condições específicas da sua distribuidora e recebendo o benefício da capitalização da Eletrobras –, e o cenário pós-MP, em que esses mesmos consumidores deixam de fazer os pagamentos extraordinários, mas também não contam mais com o desconto proporcionado pelos recursos relativos à capitalização da empresa. A comparação dos valores combinados é indicada na Figura 4.

7. Considerações Finais

Com a MP 1.212, uma parte do benefício oriundo da desestatização da Eletrobras, que vinha sendo distribuído de forma igualitária entre todos os consumidores cativos do Brasil, será utilizado para quitar empréstimos que foram alocados de acordo com as necessidades específicas de cada distribuidora.

O resultado é que a nova alocação de benefícios oriundo da desestatização da Eletrobras deixará de ser isonômica entre as concessionárias de distribuição, resultando em uma quebra de expectativas em relação aos benefícios esperados para mais de 67% do mercado cativo de energia do país. Dentre as maiores empresas com consumidores cativos prejudicados estão Enel SP, Cemig e Copel, como mostra a Figura 4. Nesses casos, pode-se dizer que o processo foi desvantajoso: o caldo ficou mais caro que o peixe.

Por outro lado, além dos bancos envolvidos na operação financeira, os maiores beneficiados pela quitação antecipada das contas Covid e Escassez Hídrica serão os consumidores cativos das distribuidoras que precisaram, proporcionalmente, de mais recursos durante as crises recentes para evitar grandes aumentos tarifários, com destaque para a Equatorial GO, Enel CE e Enel RJ.

Os recursos do SETE utilizados pela TR Soluções para quantificar as projeções dos valores combinados das quotas de CDE Covid, Escassez Hídrica e Eletrobras, no período de 2025 a 2027, com a aplicação da MP 1.212 estarão disponíveis também para os usuários da plataforma a partir do dia 30 de outubro de 2024.

1Nos termos do inciso I do caput do Art. 4º da Lei n. 14.182, de 2021 , e reiterado pelo parágrafo único do Art. 4º da MP 1.212

2Durante a discussão para deliberação do item 2 da pauta da 35ª Reunião Pública Ordinária da diretoria da Aneel, ao ser indagada pelo diretor Fernando Mosna quanto aos benefícios da quitação antecipada das referidas contas, a área técnica da Aneel revelou que seria necessária uma análise detalhada, combinando a retirada das contas com a suspensão dos aportes da CDE Eletrobras por três anos. Na mesma oportunidade, relatou-se que a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) fez uma análise global do benefício da operação de antecipação da quitação das contas, encaminhando posteriormente ao MME para que atestasse o benefício aos consumidores. A área técnica da Aneel também esclareceu que, posteriormente, em um processo específico, a título apenas de divulgação, a Agência irá quantificar os valores combinados (contas e CDE Eletrobras) de forma detalhada, apresentando assim os efeitos tarifários da MP 1.212 por distribuidora.

3No âmbito dos processos tarifários, quando aplicada a estrutura tarifária na planilha conhecida como PCAT, a Aneel dá à componente tarifária o nome de “TUSD_CDE_COVID”.

4Na PCAT, é denominada “TE_CDE_COVID”.

96. Confira as consultas públicas terminando nos próximos dias

Data final: 28/10/2024

– *Consulta Pública nº 176 de 27/09/2024* 

Diretrizes para a realização do Leilão para Contratação de Potência Elétrica, a partir de novos sistemas de armazenamento que acrescentem potência elétrica ao Sistema Interligado Nacional – SIN, denominado “Leilão de Reserva de Capacidade na forma de Potência, por meio de sistemas de armazenamento, de 2025 – LRCAP Armazenamento de 2025”.

– *Consulta Pública nº 177 de 08/10/2024*

Proposta de Contrato de Energia de Reserva – CER, elaborado pela Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel, para comercialização de energia elétrica produzida pelo Complexo Termelétrico Jorge Lacerda – CTJL, no âmbito do Programa de Transição Energética Justa – TEJ, de que trata a Lei nº 14.299, de 5 de janeiro de 2022

Data final: 31/10/2024

– *Consulta Pública 026/2024*

Obter subsídios para discussão da minuta de Resolução Normativa que visa realizar alterações nos artigos 173 e 174, bem como no Anexo I, da Resolução Normativa nº 1.009/2022, dispostos no Anexo da Nota Técnica nº 193/2024-SFF-SGM/ANEEL, de modo a adequar a regulação da ANEEL ao Novo Portal Único de Comércio Exterior, em consonância com o disposto no Decreto nº 11.577/2023.

Saiba mais no site: https://bit.ly/Aneel-ConsultaPública e https://bit.ly/MME-ConsultaPública

Fonte: Canal Energia

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